Ai que saudade do lar

Isabelly Emiliano
3 min readAug 18, 2020

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Reconheci aquele lugar como lar há alguns anos, eu tinha 10 e sabia que a casa já tinha vivido muito tempo. Lá era agradável, tanto na temperatura quanto no som, não sentia frio ou calor e nos meus ouvidos chegavam notas da bossa nova, apenas melodia porque aparentemente era uma música autoral. O cheiro era de comida caseira, as vezes cuscuz de milho, macaxeira com charque ou batata doce com queijo, junto com um perfume que só gente velha usa. O meu lar era ela… aquela “veinha”.

Os de fora chamavam de Liete, eu costumava a chamar de “vó liete”, mas se foi com outro nome entalhado no mármore “Aliede Maria”. Esse que só descobri há alguns anos quando comecei a acompanhá-la ao médico, a secretária chamava:

“Senhora Aleide-Aliêde Maria dos Santos.”

Continuava eu a ler meu livro com a cabeça encostada no ombro enrugado dela, afinal quando a gente é criança todo adulto é velho. Não conhecia aquela mulher que a secretária mal sabia pronunciar o nome.

“O médico tá me chamando”, disse minha avó levantando.

Naquele momento conheci um outro espaço do meu lar. A velha não gostava de ser chamada assim, até rasurou o RG. Por causa disso me contou histórias, que eu era privilegiada que conhecia cada parte de Eliete e 100% de Aliede. A primeira era divertida, dona de boteco e referência para os outros, até hoje me chamam de “neta de Liete”. Já a segunda era amorosa, banguela e cozinheira, tinha o costume de me fazer sair de casa só depois de alimentada.

Meu lar era aquela velha com a barriga que mais parecia ter engolido uma melancia, de pernas e braços pelancudos, toda aquela casa me faz falta. Eu era pequena, menor que os 150 cm dela, deitei em seu colo, a cabeça repousada naquela coxa ossuda, enquanto ela passava as mãos pelos meus cachos cor de mel e dizia:

“Essa é minha pichochotinha”

É uma pena o tempo não poder voltar ou nós duas não podermos fazer isso. Gostaria de poder correr e me esconder naquele abraço, derramar as lágrimas pela injustiça de não ser amada por quem tanto desejava, receber um sorriso de meia dentadura quando fizesse a manutenção das luzes no cabelo. Ou apenas notar as lágrimas a rolar por aquelas bochechas roliças só porque me via debilitada após horas no bloco cirúrgico.

Ai que saudade de casa.

As paredes mulatas nem devem existir mais, o reboco já caiu faz tempo, assim como a fundação, consumida por aquela maldita doença. Talvez tenha sobrado aqueles cabelos crespos agora quase totalmente brancos.

Ai que saudade do meu lar, de não molhar o travesseiro ou acordar no meio da noite querendo vê-la dormir

Só pra esse lugar que eu gostaria de voltar.

Se você, assim como eu, também sentiu vontade de chorar, lê esses textos abaixo pra reviver essa sensação:

Soube do câncer dela

Soube do óbito dela

365 dias sem ela

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Isabelly Emiliano
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Written by Isabelly Emiliano

Escritora muito antes de ser jornalista. Acabei de escrever um livro que precisa ser publicado. Enquanto o dia não chega, você pode ler alguns textos aqui.

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