Quando a dor do outro dói mais

Isabelly Emiliano
4 min readDec 9, 2019

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A capital de Pernambuco, Recife, é uma cidade tão quente que já foi chamada de “Hellcife” por muitas bocas. A temperatura é alta e a sensação térmica ultrapassa tantos os graus Celsius que o pé chega a queimar dentro do sapato. O transporte público é falho, mas a necessidade de pegá-lo possibilita o crescimento do conhecimento empírico, como, por exemplo, a presença de dois corpos no mesmo espaço (contrariando a terceira lei de Newton). Graças a isso, é possível ver, ouvir e conhecer tanta coisa seja cultural, empreendedora ou que necessite despertar a empatia e solidariedade de quem está ouvindo.

Quando a dor do outro dói mais
Divulgação: Google

Após 30 longos minutos num metrô com o sistema de ventilação quebrado, estava suando de quase manchar o vestido preto que estava usando (numa tarde quente de Recife). Desci na estação Joana Bezerra, localizada na ilha homônima e fui em direção ao Terminal Integrado. Com destino para a Avenida Agamenon Magalhães, 90% das paradas me serviam, então desses poderia pegar qualquer condução que saísse primeiro.

O primeiro ônibus que parou foi o Circular (Conde da Boa Vista/ Rua do Sol), daqueles ônibus novos, e um dos únicos que tinha ar-condicionado (e estava funcionando). Como puxaria o cordão pedindo parada em três pontos, escolhi não sentar, fiquei na porta traseira. Foi quando me senti tocada.

Contei essa história a minha mãe, assim que cheguei em casa, e disse que foi Deus quem me tocou.

Olhei para baixo, havia uma mulher negra sentada nos degraus da escada, estava tão encolhida protegendo uma sacola ecológica no colo. Ela era tão magra, apenas pele e osso, que me fez pensar que não havia comido nada o dia inteiro.

Fitei o cabelo escuro. Foi quando o cocoruto alheio desapareceu e dentro dos meus olhos surgiu uma visão de mim mesma, como se visse um espelho se abaixando até sentir a borracha da minha sandália Zaxy com a posterior da minha coxa.

“A senhora está com fome?”

Na minha visão, ela dizia que estava e eu tirava o dinheiro guardado no bolso interno da minha mochila, exatamente onde eu havia guardado.

Foi quando a dor do outro me atingiu. O desejo de ajudar aquela mulher tomou conta de todo o meu corpo, então não podia negar, me abaixei devagar e toquei no braço magro dela. Quando encontrei os olhos dela, leitosos e escuros, senti vontade de chorar, cada pedaço me pedia ajuda, mesmo que a boca dela não se mexesse. O rosto era queimado do sol e as pregas eram flácidas, tinha poucos dentes, e quatro deles tinham cáries muito aparentes.

Doía muito em mim, imagine para ela.

“Moça, a senhora está bem?”

O jeito que respondeu, me fez engolir em seco:

“Eu tenho vergonha moça. Eu tenho vergonha de dizer que eu peço esmola no sinal.”

Assim como tinha visto, entreguei o dinheiro a ela e fiquei de cócoras conversando com ela:

“Eu vejo você com roupa nova. Eu fico com vergonha, só tenho essa aqui.”

Ela vestia uma camisa básica masculina e uma saia verde muito esgarçada.

“Como a senhora se chama? A senhora vem muito aqui? Eu fico ali no Português.”

“Isabelly. Qual o seu nome?”

“Meu nome é Andreia. Uma madame parou o carro ali na frente e disse que traria uma roupa pra eu passar natal e ano, e nada. Não apareceu mais.”

Esse ponto era ainda mais tocante do que a alimentação. Em 2018 o excesso de vestimentas me levou a estabelecer a meta de passar o ano seguinte inteiro sem comprar sequer mais uma peça. Enquanto tinha tantas, dona Andreia só tinha a que estava no “couro”.

“Dona Andreia, eu não sei a próxima vez que venho na cidade. Mas, minha avó morreu há algum tempo e eu tenho muitas roupas dela que ainda são novas ainda. Eu prometo trazer pra senhora.”

“A senhora promete.”

“Prometo.”

“Quando a senhora vai trazer?”

“Eu ainda não sei. Mas, eu prometo que vou lhe dar, nem que tenha que procurar a senhora nessa avenida todinha.”

“Eu fico ali, na frente do Hospital Português. Eu fico ali sentada. Vou ficar esperando pela senhora, viu”

“Espere mesmo que eu vou trazer.”

Descemos juntas do coletivo. Ela atravessou a rua e eu segui andando em frente. Espero que outra pessoa tenha se compadecido da situação física daquela senhora.

Quando a dor do outro doeu mais que a minha, passei a ser uma nova ser humana, solidária, empática. E, possivelmente, eu deva ter entendido o segundo mandamento mais importante de Deus:

“Ame o teu próximo como a ti mesmo.”

A dor da dona Andreia tem estado no meu coração até que eu volte a encontrá-la e lhe entregar o que prometi.

Divulgação: Google

Enquanto a temperatura de Recife está ainda mais quente fico me perguntando onde estará essa mulher que não tem nada para proteger a sua pele dos raios solares ou até da chuva. Dona Andreia não tem comida, casa, segurança e tampouco dinheiro.

A dor dela dói mais que a minha.

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Written by Isabelly Emiliano

Escritora muito antes de ser jornalista. Acabei de escrever um livro que precisa ser publicado. Enquanto o dia não chega, você pode ler alguns textos aqui.

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